Fonte: Justificando
Autor: Pedro Pulzatto Peruzzo
Professor e Ativista dos Direitos Humanos
Quinta-feira, 12 de maio de 2016
A denúncia de um Advogado sobre a situação dramática dos indígenas frente a repressão de fazendeiros
O motivo deste texto é uma série de ameaças que fazendeiros do Mato Grosso do Sul, e também do Sul da Bahia, têm feito contra os povos indígenas que vivem nesses estados. Alguns criminosos (pois ameaça é crime previsto no artigo 147 do Código Penal) estão afirmando em veículos de comunicação que quando a Presidenta Dilma for afastada do cargo ocorrerá uma série de ataques a aldeias indígenas com a finalidade de assassinar lideranças e oprimir o movimento de retomada de terras tradicionais. Essas denúncias chegaram até mim através de cartas e mensagens de lideranças indígenas desses estados e através do Núcleo Indígena do Instituto de Geociências da USP[1]. A compreensão do histórico de opressão e resistência contra os povos indígenas no Brasil é, portanto, fundamental para entendermos a seriedade dessas ameaças.
Quero também registrar, apenas para não perder a oportunidade, que a estratégia do medo e da opressão de movimentos populares neste contexto de impeachment tem sido utilizada cada vez com mais frequência pelo Estado, através das forças de segurança pública, valendo registrar o caso da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que tem feito fotos de celular após abordagens de menores (infratores, suspeitos ou não suspeitos) e, em alguns casos, circulado essas fotos em listas privadas de whatsapp. Além disso, muitos adolescentes de periferia têm sido intimados para prestar depoimentos em Delegacias de Polícia sem justificativa alguma, muitas vezes apenas por terem participado de alguma manifestação de rua. Por fim, celulares de advogados populares estão apresentando ruídos, a bateria descarrega com muito pouco tempo de uso, a internet cai toda hora, o que nos chama a atenção para a possibilidade de estarmos todos grampeados ao pior estilo Sérgio Moro.
A destituição da Presidenta da República, portanto, será utilizada como álibi para a perpetração de ilegalidades sistemáticas contra grupos excluídos e movimentos populares e este texto é, não sem medo, um anúncio de que estamos de olho nessas atrocidades que estão sendo anunciadas e, até que destruam completamente a nossa liberdade de comunicação, a internet continuará sendo utilizada por nós para denunciar os desmandos desses criminosos cujos ímpetos destrutivos e egoístas estiveram reprimidos pelas políticas públicas voltadas aos mais pobres nesses últimos anos e que, agora, aflora com vigor e agressividade não contra os corruptos, mas contra os mais pobres que nunca participaram ativamente no exercício de qualquer poder político no Brasil e que desde sempre foram vítimas da corrupção.
A história da relação entre o invasor colonial europeu e os povos indígenas esteve marcada por uma forma específica de aproximação, permeada de processos por vezes romanceados ou, na maior parte das vezes, violentos. Inicialmente, quando da chegada dos portugueses, os povos que aqui viviam foram classificados como ingênuos, simples e, por isso mesmo, prontos para serem convertidos à religião católica.
Esse, aliás, é um dos pontos que mais marcam a carta de Pero Vaz de Caminha. O encantamento com a ingenuidade e provável facilidade de conversão dos povos originários com os quais os portugueses tiveram o primeiro contato, bem como a mistura de encantamento e estranhamento em relação à nudez desses povos é a cara e a cor da violência e da escravidão a que foram submetidos os indígenas no Brasil e na América Latina. Não são poucas as passagens em que Caminha analisa os órgãos genitais dos homens e das mulheres com relatos pitorescos e detalhados que seriam apresentados ao rei.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (...) E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela.[2]
As trocas de objetos fartos (para uns a madeira, o ouro e outros bens naturais; para outros os espelhos e as doenças) foram apenas uma das formas pelas quais os portugueses se aproximaram e contaminaram com suas doenças e os seus vícios os povos tradicionais. Já em 1562 o Padre Anchieta relatou a morte de 30.000 escravos e índios por doenças:
No mesmo ano de 1562, por justos juízos de Deus, sobreveio uma grande doença aos índios e escravos dos Portugueses, e com isto grande fome, em que morreu muita gente (485), e dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos Portugueses a se fazer escravos, vendendo-se por um prato de farinha (486), e outros diziam, que lhes pusessem ferretes, que queriam ser escravos: foi tão grande a morte que deu neste gentio, que se dizia, que entre escravos e índios forros morreriam 30.000 no espaço de 2 ou 3 meses.[3]
Existiram, contudo, esses contatos dos “outros muitos que estavam com moças e mulheres”[4], que iniciaram o processo de constituição miscigenada do povo brasileiro que, antes de poder ser afirmado apenas como um processo bonito, colorido e rico, merece ser encarado com a crueza da realidade dos estupros e abusos sexuais de crianças, adolescentes e mulheres que marcaram esses contatos entre ditos colonizadores e ditos colonizados. Essa relação se repetiu durante a ditadura civil-militar brasileira e até hoje é prática corriqueira de imposição de medo em comunidades indígenas que estão lutando contra invasores ilegítimos de suas terras[5].
Num segundo momento, quando não havia mais dúvidas a respeito da existência de riquezas (ouro, prata, madeira, terra), à divisão do território em capitanias hereditárias e o início da exploração econômica da colônia se somou a tentativa de escravização dos índios. A escravização foi a outra face da moeda. A forma etnocentrada como o colonizador via as práticas tradicionais de alguns povos indígenas não apenas fez com que os relatos dos colonizadores generalizassem características de determinados povos como marcas gerais de todos os povos indígenas (antropofagia), como também deu lugar a discursos ambíguos que colocavam em dúvida a predisposição dos índios à catequização.
Ainda que com interesses cristãos em pauta, a exploração econômica do Brasil ocorreu e ainda ocorre às custas das vidas e das culturas indígenas, lembrando também da escravidão a que foram submetidos os negros e que marca a estrutura econômica do país. O modo de produção colonial utilizava indiscriminadamente o trabalho escravo de índios e negros e foi responsável por um processo de expropriação de terras tradicionais indígenas que veio a se consolidar em meados da década de 1940 com a colonização do oeste do país e se consumar com a ditadura civil-militar, que se incumbiu de desenvolver como política de estado a grilagem de terras, a tortura e o assassinato dos povos indígenas.
Na década de 1940, Getúlio Vargas iniciou uma política federal de exploração e ocupação do Centro-Oeste por colonos que ficou conhecida como a “Marcha para o Oeste”, entrando em contato com populações indígenas que estavam isoladas e favorecendo a invasão e titulação de terras indígenas, reforçando uma política que à época já era adotada por vários governos estaduais.
Entre 1930 e 1960, o governo do estado do Paraná titula terras indígenas para empresas de colonização e particulares no oeste do estado. O governo de Moysés Lupion, em particular, notabiliza-se por práticas de espoliação de terras indígenas. Os interesses econômicos de proprietários se faziam representar nas instâncias de poder local para pressionar o avanço da fronteira agrícola sobre áreas indígenas. Em 1958, deputados da Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovaram o Projeto de Lei n° 1.077, que tornava devolutas as terras dos índios Kadiweu. Em 1961, o Supremo Tribunal Federal decide pela inconstitucionalidade da lei, mas, a essa altura, estava estabelecida a invasão, uma vez que as terras já tinham sido loteadas (Ribeiro, 1962, pp. 108-112). Além das invasões propriamente ditas, eram comuns arrendamentos de terras que não obedeciam às condições do contrato – quando este havia – ocupando enormes extensões de terras indígenas; constituindo, em alguns casos, situação de acomodação das irregularidades (invasões praticadas e posteriormente legalizadas pelo SPI por meio de contratos de arrendamento).[6]
A atuação sistemática do Estado brasileiro violando direitos territoriais indígenas configurava afronta direta à Constituição, pois desde a Constituição de 1934 esses direitos sobre as terras eram assegurados aos povos indígenas. A Constituição de 1934 dizia no art 129: “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem. permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.” A Constituição de 1937 dizia no art. 154: “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas.” A Constituição de 1946 dizia no art. 216: “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.” A Constituição de 1967 dizia no art. 186: “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.” A emenda Constitucional de 1969 dizia no art. 198: “As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes.”
Na ocasião, foram emitidas declarações oficiais fraudulentas que atestavam a inexistência de índios nas áreas de interesse de particulares e, para conseguir a posse dessas áreas e tornar real a extinção de indígenas no papel, as empresas e os particulares empreenderam ações para a extinção de povos indígenas, chegando a oferecer alimentos envenenados, causando contágios propositais, sequestros de crianças e massacres com armas de fogo.
A mais dramática das violações cometidas contra os Cinta Larga ficou conhecida como Massacre do Paralelo 11. Em outubro de 1963, foi organizada uma expedição, planejada por Francisco Amorim de Brito, encarregado da empresa Arruda, Junqueira e Cia. Ltda., a fim de verificar a existência de minerais preciosos na região do rio Juruena. A expedição era comandada por Francisco Luís de Souza, pistoleiro mais conhecido como Chico Luís. O massacre teve início quando um grupo Cinta Larga estava construindo sua maloca e Ataíde Pereira dos Santos, pistoleiro profissional, atirou em um indígena. Em seguida, Chico Luís metralhou os índios que tentavam fugir. Os pistoleiros ainda encontraram uma mulher e uma criança Cinta Larga vivas. Chico Luís atirou na cabeça da criança, amarrou a mulher pelas pernas de cabeça para baixo e, com um facão, cortou-a do púbis em direção à cabeça, quase partindo a mulher ao meio.[7]
A partir da década de 1950 ocorreram vários conflitos entre o povo Cinta Larga e os seringueiros e também com as empresas de mineração e de colonização na região. Estima-se que 5 mil Cinta Larga morreram por envenenamento por alimentos misturados com arsênico, aviões que atiravam brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola, além de assassinatos em emboscadas, nas quais suas aldeias eram dinamitadas, ou ainda por pistoleiros, sempre tendo como pano de fundo a proposta de ocupação de terras indígenas, em evidente afronta à Constituição vigente à época.
O sul do Mato Grosso do Sul, historicamente ocupado pelos grupos de língua guarani, foi em grande parte concedido em arrendamento à Cia. Matte Laranjeira no fim do século XIX e foi palco de assassinatos de indígenas por colonos que, sob incentivo do governo Vargas (marcha para o oeste), se dispunham a colonizar a região nos anos 40. Além do confinamento de povos dentro de reservas criadas pelo Estado, a expulsão de indígenas normalmente envolvia queima das casas, espancamentos e assassinatos.
O contágio de indígenas por negligência e imprudência nos momentos de contato infelizmente não é um caso superado, mesmo no século XXI. Em notícia veiculada pela Survival International, em 20 de abril de 2015, foi anunciado que Jakarewyj, uma mulher dentre os três índios Awá recém-contatados – a comunidade mais ameaçada do mundo –, contraiu gripe severa e doença pulmonar após o seu grupo ter sido “cercado por madeireiros” e contatado em dezembro 2014 por uma comunidade Awá assentada. “Desde então, a saúde dessa mulher se deteriorou rapidamente e ela está confusa e com uma aparência emaciada.[8]”
Após o golpe militar muitas lideranças indígenas foram assassinadas e outras tantas foram deslocadas para locais distantes às suas aldeias com a clara finalidade de desarticular os movimentos de resistência (que sempre existiram desde a Revolução dos Tamoios, no século XVI). No ano de 1968 foi editado o AI-5, que marcou o início de uma política indigenista ainda mais agressiva, acrescentando, além das práticas citadas para expropriação das terras indígenas, perseguições sistemáticas a lideranças, inclusive com a criação de presídios para indígenas.
O Plano de Integração Nacional (PIN), criado pelo Decreto-lei 1.106 de 16 de junho de 1970, tinha a finalidade específica de financiar o plano de obras de infra-estrutura nas regiões compreendidas nas áreas de atuação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), promovendo com mais rapidez sua integração à economia nacional (artigo 1º), sendo que a primeira etapa do PIN previa a construção imediata das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém (artigo 2º). O PIN previa o estímulo à ocupação da Amazônia, que à época era considerada como um grande vazio populacional e econômico, ignorando por absoluto a existência de povos indígenas vivendo de modo social e economicamente sustentável na região.
A ideia de integração se apoia em abertura de estradas, particularmente a Transamazônica e a BR 163, de Cuiabá a Santarém, além das BR 174, 210 e 374. A meta era assentar umas 100 mil famílias ao longo das estradas, em mais de 2 milhões de quilômetros quadrados de terras expropriadas. Na época, o ministro do Interior era o militar e político José Costa Cavalcanti, um dos signatários do AI-5, que ficaria no cargo de 1969 até 1974, apoiado por Costa e Silva (a quem ajudara a ascender a presidente) e por Médici. Costa Cavalcanti ele próprio declara que a Transamazônica cortaria terras de 29 etnias indígenas, sendo 11 grupos isolados e nove de contato intermitente – acarretando em remoções forçadas. Para a consecução de tal programa, a Funai, então dirigida pelo general Bandeira de Mello, firmou um convênio com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) para a “pacificação de 30 grupos indígenas arredios” e se tornou a executora de uma política de contato, atração e remoção de índios de seus territórios em benefício das estradas e da colonização pretendida.[9]
A “pacificação” foi um processo sistemático de violação de direitos (tal qual ocorre ainda hoje nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo), bastante orientada pela ideia de integração, que em 1973 foi positivada no ordenamento jurídico brasileiro no artigo 1º do Estatuto do Índio (Lei 6.001/73). Integrar significava afastar o indígena do seu modo de vida tradicional, modo de vida esse que era considerado um empecilho ao progresso, e utilizá-lo como mão-de-obra barata ou escrava. Numa fala de janeiro de 1976, o Ministro do Interior Maurício Rangel Reis (governo de Ernesto Geisel) deixa esse sentimento bastante claro: “Os índios não podem impedir a passagem do progresso (...) dentro de 10 a 20 anos não haverá mais índios no Brasil.”[10]
No Relatório Figueiredo ainda consta o seguinte sobre o SPI:
É espantoso que existe na estrutura administrativa do País repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos, cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefensas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça.
Para mascarar a hediondez desses atos invocava-se a sentença de um capitão ou de uma polícia indígena, um e outro constituídos e manobrados pelos funcionários, que seguiam religiosamente a orientação e cumpriam cegamente as ordens.[11]
O extermínio ainda não está consumado, pois desde sempre existiu resistência por parte dos povos indígenas. O receio, agora, é que essas ameaças de fazendeiros criminosos aumente ainda mais o número de assassinatos contra indígenas, que entre 2002 e 2010 já teve um aumento de 48%, segundo o Mapa da Violência – A Cor do Homicídio no Brasil[12], de 2012.
Depois do AI-5 e sob o comando direto dos generais Costa Cavalcanti (ministro do Interior) e Bandeira de Melo (presidente da Funai), que controlavam a política indigenista em 1969, foi criada uma cadeia oficial substituindo a cadeia ilegal existente em São Paulo sob a responsabilidade da Ajudância Minas-Bahia, sob o comando do capitão Manoel Pinheiro, militar ligado à Polícia Militar de Minas Gerais. Sobre o encarceramento ilegal de indígenas (prática ainda muito comum no Brasil, aqui registrando a recente prisão do Cacique Babau), é também bastante esclarecedor o depoimento de Honório Benites a respeito das violências a que foram submetidos os Guarani nas reservas indígenas de Mangueirinha e Rio das Cobras:
- E lá em Rio das Cobras tinha cadeia?
Tinha. A cadeia era tudo fechado assim, ficava lá fechado assim. Outro dia tirava, dava uma xicrinha de café, e voltava de novo lá pro quarto. Dois dias tinha que estar lá. E quando cumpria dois dias você saia dali, você tinha que trabalhar pra roça dele [...]. Quem não foi trabalhar, quem não fazia o serviço ia tudo pra cadeia [...]. Tinha uma comidinha assim, mas preso você sabe como é que é né. Dava qualquer coisinha pra comer e ficava ali...
(...)
- Você foi pro tronco alguma vez?
Não, eu não fui. Quem foi pro tronco foi meu irmão, e outro sobrinho [...]. O tronco era duas madeiras assim [mostra com os dedos]. Dois pedaços. Ele abre aqui e fecha aqui, então você punha cinco minutos e a veia do sangue ficava tudo estufado. Então por isso morreu dois índios que eu sei. Então tudo isso a gente viu, de perto...
Neste momento cabe registrar um fato importante para o processo de redemocratização do Brasil, que é a referência expressa, ainda hoje, ao Ato Institucional nº5 no Decreto-Lei 667/69, que reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Território e do Distrito Federal, e dá outras providências. Esse Decreto-lei permanece vigente, bem como a referência ao AI-5. Esse absurdo se repete em Decretos-Lei estaduais como o Decreto-Lei 217/70 do Estado de São Paulo, evidenciando um problema central para a formação e para a orientação das ações das Polícias Militares no Brasil.
A partir do AI-5 ocorreu um endurecimento da política indigenista e também da repressão ao movimento político-indigenista que se organizava para fazer frente ao contexto da ditadura militar. Com a edição do Decreto no 66.882/70, a Funai incorporou formalmente as atividades de assessoramento de segurança e de informações à sua estrutura organizacional, por meio de uma “Seção de Segurança e Informações”, que estava vinculada à Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério do Interior. Em 1975, foi publicado, através da Portaria nº 239, o regimento interno da Assessoria de Segurança e Informações (ASI-Funai), tal como passa a ser chamada, regulamentando suas finalidades e vinculando a adequação da Funai à Doutrina da Segurança Nacional, criando um clima de constante perseguição.
Lideranças indígenas e seus apoiadores passam a ser monitorados através desse serviço de inteligência, que mapeava e descrevia as atividades que julgava “subversivas” ou “agitadoras”, com especial atenção para o CIMI, cujos membros eram frequentemente taxados de “comunistas” e tinham sua permanência ou ingresso nas terras indígenas negadas pelo órgão tutor. Pesquisadores que pleiteavam o ingresso em terras indígenas passaram a ter suas solicitações avaliadas com base na análise de suas orientações políticas. Funcionários da Funai que fomentavam ou participavam de reuniões sobre direitos indígenas ou que eram tidos como suspeitos por suas orientações políticas também passaram a ser monitorados e perseguidos. Em todos esses casos, a preocupação constante com o encobrimento de críticas à política gestada pelo órgão era a tônica principal.[13]
Hoje existe no Mato Grosso do Sul uma CPI para investigar as ações do CIMI, evidenciando a continuidade e o fortalecimento das perseguições políticas de outrora. Na CPI do CIMI os indígenas estão sendo impedidos de prestar depoimento na língua materna, ainda que a Convenção 169 da OIT (Decreto 5.051/04) diga expressamente no artigo 12: “Deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.”
Os conflitos agrários e os assassinatos dos povos indígenas é decorrência direta da omissão do Estado brasileiro na demarcação de suas terras, uma vez que o artigo 67 do ADCT diz expressamente que as demarcações deveriam ter sido concluídas até o ano de 1993. Em 29 de junho de 2015 o Ministério Público Federal atribuiu ao Ministério da Justiça a responsabilidade pelo agravamento dos conflitos fundiários envolvendo terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Em nota, o MPF registrou que a omissão do Ministério da Justiça em demarcar terras em Mato Grosso do Sul (conhecido como a Faixa de Gaza brasileira) e a demora em autorizar a presença da Força Nacional nas áreas em conflito são os principais agravantes para o clima de tensão na região.
A responsabilidade pelo conflito fundiário é toda do Ministério da Justiça. O processo demarcatório de áreas indígenas em MS, fruto de um TAC entre Funai e MPF, está paralisado desde meados de 2013, com a instauração da mesa de negociações pelo ministério. Tal mesa não avançou na resolução de nenhuma das dezenas de áreas em disputa no estado entre índios e fazendeiros, e ainda paralisou o estudo de identificação das demais áreas. Quanto ao conflito em Kurusu Ambá, a PF mesmo ciente da situação potencialmente violenta desde segunda (22), só compareceu ao local após o confronto do dia 24. A Força Nacional só foi autorizada pelo MJ a atuar na área na quarta (25) às 19h, somente após o conflito estourar. O Ministério da Justiça age, assim, com grave omissão, desrespeitando os direitos constitucionais dos indígenas.[14]
Vale ressaltar que, não obstante os avanços importantíssimos consagrados na Constituição de 1988, ainda hoje o discurso do “índio aculturado” permanece vivo na sociedade civil e nos órgãos estatais. Em processo recente de reintegração de posse da aldeia indígena do Jaraguá[15], o autor da ação de reintegração de posse 0028364-20.2005.4.03.6100, em trâmite na Justiça Federal de São Paulo, o ex-deputado constituinte Tito Costa, disse em sua petição sobre os indígenas Guarani que: “(...) são invasores ridiculamente fantasiados com cabeça de vaca e arco e flecha (...)”. Essa compreensão cinematográfica e folclórica dos povos indígenas é uma consequência da ausência de políticas públicas de educação para a diversidade e para o respeito.
Preconceito, discriminação, assassinatos, estupros, tortura, genocídio, extermínio são crimes historicamente praticados contra os povos indígenas no Brasil e que têm sido retomados nesses discursos criminosos de fazendeiros que não compreenderam o teor do parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal, que diz que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Se em algum momento histórico, como ficou descrito acima, o Estado brasileiro concedeu títulos irregulares de propriedade sobre terras indígenas, isso apenas reforça o direito dos povos indígenas a retomarem as suas terras.
O direito à resistência contra a opressão recebeu previsão expressa no artigo 2º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, nos seguintes termos: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.” Esse direito também apareceu expressamente no artigo 23 da Declaração francesa de 1793, ou seja: “A resistência à opressão é a conseqüência dos outros direitos dos homens.” Por fim, vale registrar que existe a garantia desse direito também na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (Grundgesetz):
Artigo 20 [Princípios constitucionais – Direito de resistência](1) A República Federal da Alemanha é um Estado federal, democrático e social.(2) Todo o poder estatal emana do povo. É exercido pelo povo por meio de eleições e votações e através de órgãos especiais dos poderes legislativo, executivo e judiciário.(3) O poder legislativo está submetido à ordem constitucional; os poderes executivo e judiciário obedecem à lei e ao direito. (4) Contra qualquer um, que tente subverter esta ordem, todos os alemães têm o direito de resistência, quando não houver outra alternativa.
Ainda que não exista previsão expressa desse direito na Constituição de 1988, é consequência lógica o reconhecimento de que ele decorre do regime e dos princípios por ela adotados, nos termos do que dispõe o seu parágrafo 2º, do artigo 5º. O direito à resistência dos indígenas contra o Estado (que se alia aos interesses do grande capital) e contra os invasores de suas terras (os fazendeiros com títulos ilegais) é fundamental para o exercício da cidadania e para a participação política, pois sem esse direito os indígenas ficam presos a um conjunto restrito de possibilidades. As retomadas de terra não podem ser criminalizadas no Brasil e se algum fazendeiro quiser reclamar seus direitos, que o faça contra o Estado que concedeu títulos irregulares, e não contra os indígenas que viviam nestas terras bem antes da chegada dos estupradores companheiros de Caminha.
Denunciamos, portanto, as ameaças feitas contra os povos indígenas e registramos que a Comissão de Direitos Humanos da 116º Subseção da OAB/SP (Jabaquara) enviou e-mail a todas as Subseções da OAB/MS solicitando apoio para mediar e evitar a violência que está sendo abertamente anunciada.
Pedro Pulzatto Peruzzo é advogado, professor pesquisador da PUC-Campinas e diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Jabaquara.
[1] https://www.facebook.com/N%C3%BAcleo-Ind%C3%ADgena-IGc-USP-1535734130061...
[2] CAMINHA, P. V. A Carta de Pero Vaz de Caminha. 1500.
[3] Cf. ANCHIETA, J.. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões do padre José de Anchieta: 1554-1594. 1933. p. 365.
[4] Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. (CAMINHA, P. V. A Carta de Pero Vaz de Caminha. 1500.)
[5] O estupro de mulheres e adolescentes indígenas é objeto de noticiários com frequência. Apenas a título de exemplo, o G1 noticiou o estupro de uma senhora de 104 anos em 11/06/2012: . Além disso, na Bahia o estupro é utilizado como tática de opressão psicológica nas áreas de conflito de terra: .
[6] Id.
[7] Id.
[8] Acesso em 24/04/2015.
[9] COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Final. Texto 5 - Violações de direitos humanos dos povos indígenas. 2014, p. 203-264.
[10] Id.
[11] Página 9 do relatório apresentado pelo procurado Jader de Figueiredo Correia ao Ministério do Interior. Disponível em < http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/institucional/grupos-de-trabalho/gt_crimes_dit... Acesso em 27 de julho de 2015.
[12] Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil. 2012.
[13] COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Final. Texto 5 - Violações de direitos humanos dos povos indígenas. 2014, p. 203-264.
[14] Acesso em 24 de julho de 2015.
[15] A aldeia indígena do Jaraguá teve uma área de 532 hectares declarada pela Funai como terra tradicionalmente habitada por Guaranis (Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena publicado no Diário Oficial da União em 30/04/2013). Ocorre que os cerca de 600 indígenas vivem numa área de apenas 1,7 hectares em razão da ausência de homologação da terra pelo Poder Executivo e de ameaças de agressão física e destruição das matas e nascentes por aqueles que se dizem proprietários da área. Ps- Durante a redação desta Tese o Ministro da Justiça homologou o laudo da FUNAI, mas cabem recursos.
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