Foto: Amazônia Real/Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)
Proposta coloca em risco uma das regiões mais preservadas e de maior biodiversidade da Amazônia. Recursos do Fundo Amazônia poderão ser utilizados para financiar a obra
A Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Lei (PL) que coloca em risco uma das regiões mais preservadas e de maior biodiversidade da floresta amazônica ao flexibilizar o licenciamento ambiental do reasfaltamento da rodovia BR-319, que corta o bioma e conecta Manaus (AM) a Porto Velho (RO). O PL permite ainda o uso de recursos do Fundo Amazônia para financiar a obra. O texto será enviado ao Senado.
A proposta, que classifica o empreendimento como "infraestrutura crítica, indispensável à segurança nacional", foi aprovada nesta terça-feira (19), com 311 votos a favor e 103 contra. A votação gerou indignação entre a sociedade civil e especialistas, que veem o projeto como um ataque direto à preservação do bioma e aos direitos das populações indígenas e tradicionais.
“É evidente e comprovado que a abertura de rodovia é um vetor para o desmatamento e a grilagem. Centenas de estudos indicam isso, é preciso ter cautela”, afirma Alexandre Gaio, da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa). “Não temos mais tempo para permitir que um empreendimento seja feito sem as devidas medidas compensatórias e mitigadoras”, completa.
Em nota, a Abrampa declarou que o projeto, ao propor a repavimentação da rodovia sem o devido licenciamento ambiental, pode agravar eventos climáticos extremos na região amazônica, intensificando o desmatamento, as queimadas e, em consequência, as emissões de gases de efeito estufa.
“Não faz sentido uma lei para uma obra específica. Isso fere a divisão de poderes entre Legislativo e Executivo”, alerta Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima (OC). “É uma lei esvaziada, de uso político. Não deveria ser essa a opção do legislador nacional. As leis têm que ter conteúdo normativo”, avalia.
“É inapropriado que a decisão sobre determinado projeto seja exclusivamente política, sem nenhum critério técnico e objetivo”, critica Luís Henrique Sanches, professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Associação Internacional de Avaliação de Impactos.
Licenciamento fracionado
O PL nº 4.994/2023 determina que a liberação e o licenciamento ambiental para obras "de pequeno e médio potencial poluidor" relacionadas à rodovia "deverão ser realizados por meio de procedimentos simplificados ou por adesão e compromisso, inclusive os serviços acessórios ou necessários à realização das obras da rodovia". Ao compartimentar e fracionar o licenciamento ambiental, o projeto desconsidera o impacto global do empreendimento. A licença por “adesão e compromisso” é feita de forma automática, por meio do preenchimento de documentos via internet, sem nenhuma análise prévia dos órgãos ambientais.
“É importante que sejam avaliados os impactos diretos, indiretos e cumulativos, inclusive das obras derivadas da obra principal, que não são apenas ‘serviços acessórios’”, alerta Sanches. Para ele, a proposta é contrária às recomendações internacionais de avaliação de impactos para empreendimentos desse porte e tem potencial de impactos significativos.
“Haverá, certamente, lesão a direitos”, avalia Alexandre Gaio, da Abrampa. “Ao fazer a obra sem o licenciamento completo, sem o devido debate sobre todos os impactos, estamos abrindo espaço para graves lesões aos direitos fundamentais e ao meio ambiente. Não me parece adequado, justo, legal e constitucional, se buscar atalhos para agilizar o licenciamento e colocar em risco outros direitos constitucionais”.
Em nota técnica, o ISA e o Observatório do Clima consideram que o projeto pode ser alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade, já que o licenciamento simplificado para atividades de médio impacto ambiental viola a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto.
“Além de poder gerar danos significativos ao meio ambiente e à população do entorno, o PL é contraproducente para aqueles que querem ver a obra implantada rapidamente”, pondera Mauricio Guetta, assessor jurídico do ISA. “As inconstitucionalidades do PL são flagrantes e sua aprovação resultará em judicialização desnecessária e insegurança jurídica e financeira. Não faz sentido sob nenhum ângulo”.
Fundo Amazônia
Além da flexibilização do licenciamento, o projeto autoriza o uso de doações recebidas pela União, incluindo recursos do Fundo Amazônia, para a repavimentação da rodovia. Esse ponto é visto por alguns especialistas como um desvio de finalidade desses recursos, que originalmente são destinados ao combate ao desmatamento na Amazônia.
“Esse é um problema de injuridicidade. Temos acordos com os doadores que regem a aplicação desses recursos e as diretrizes concretas para sua aplicação são fixadas pelo Comitê Orientador do Fundo Amazônia”, explica Araújo.
Dispensa de licenciamento
Originalmente, o projeto continha um dispositivo que dispensava o empreendimento como um todo do licenciamento ambiental. Depois de acordo com o governo, o relator do PL, deputado Capitão Alberto Neto (PL-AM), aceitou exclui-lo.
Para o deputado Nilto Tatto (PT-SP), no entanto, a mudança não reverteu a inconstitucionalidade da proposta. “Fracionar processo de licenciamento também é inconstitucional. O PL trabalha com conceitos ultrapassados, não tem nenhuma estrada que pode ser enquadrada no quesito segurança nacional. Os recursos do Fundo Amazônia também têm regras próprias de destinação. O projeto é inócuo, feito para os deputados da Amazônia fazerem política”, afirma Tatto.
“Apesar da negociação para retirada desse dispositivo, o texto foi aprovado com autorização para processo de licenciamento ambiental simplificado e fracionado, o que não garante a aplicação de mecanismos de monitoramento, mitigação e compensação. É um retrocesso, uma afronta à legislação vigente e à defesa do meio ambiente”, pontua a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ).
Obra impacta Terras Indígenas
Construída nos anos 1968 a 1976, rasgando a floresta amazônica entre Manaus e Porto Velho, a BR-319tem cerca de 885 km de extensão e foi planejada na época do chamado “milagre econômico brasileiro” da Ditadura Militar, com o objetivo de ser um eixo de colonização, tornando possível fazer uma viagem de carro entre as duas capitais em cerca de 12 horas. A manutenção da rodovia foi abandonada em 1988 e retomada anos depois.
A estrada vem sendo reconstruída de forma irregular, sem licenciamento ambiental para as obras, como exige a legislação. Os impactos chegaram a vários povos indígenas da região, inclusive na aldeia São Francisco, na Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauá-Mirim, no município de Tapauá, na parte sul do Amazonas, a área do estado mais impactada por desmatamento, grilagem e queimadas.
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