Angola em chamas
Foto: Fundação Matutu/Flickr (CC BY-ND 2.0)
Todos os anos, na estação seca, de Junho a Setembro, Angola queima. Queima um pouco mais. Perde mais árvores, florestas desaparecem e altera-se o ecossistema.
A desordem das queimadas para a caça de pequenos animais, para a preparação das terras para a agricultura de subsistência e pela simples vontade de queimar, faz com que até os cemitérios também sejam queimados. É o caso do cemitério de Sacavela, no município do Wako-Kungo, Kwanza-Sul, que também ardeu, como se a comunidade local quisesse enviar os seus mortos para o inferno. Queimam tudo, e até, algumas vezes, as suas próprias casas por conta da desordem.
Só na segunda semana deste mês de Setembro, os incêndios florestais devastaram seis por cento do total da superfície terrestre de Angola, de acordo com o Sistema Global de Informação de Incêndios Florestais. Trata-se da percentagem mais alta de terra queimada no mundo, seguindo-se a nossa vizinha República Democrática do Congo, com 2,6 por cento.
Por sua vez, a Global Forest Watch revela que só neste ano de 2024 a monitoria internacional registou 109 349 alertas incêndio florestais em Angola. De 2001 a 2023, a referida organização estima que Angola perdeu perto de quatro milhões de hectares de cobertura de árvores, equivalente a sete por cento do total da cobertura de árvores no país.
Na aldeia de Zambele, na localidade de Muxinda (Lunda-Norte), o jovem João Baptista “Chá Preto” explica como, em Agosto, um grupo de quatro caçadores e dois ajudantes (kiximbas), um dos quais o próprio, queimou uma grande extensão florestal que lhes rendeu a caça de duas gazelas.
Outro jovem, Corino Kipanda, também kiximba, diz ter participado, há dias, no incêndio de outra área florestal extensa que rendeu ao seu grupo algumas pacas (cambuije).
No desvio do município do Quela, em Malanje, o carvoeiro Paíto e alguns colegas vendem dezenas de sacos de carvão junto à Estrada Nacional 230. Paíto conta-nos que, nesta região, há muitos grupos de carvoeiros que se dedicam a abater árvores para produzir carvão: “Nós cortamos muitas, muitas árvores sem contar. Depende apenas da nossa força. A mata não acaba.” Esta crença na infinidade dos recursos naturais, aliada à explosão demográfica (a actual população angolana, de 36 milhões de habitantes, triplicou nos últimos 30 ano), à pobreza extrema e ao desgoverno, empurra o país para a catástrofre ambiental.
O soba de Zambele lamenta: “Este município [de Capenda-Camulemba], está todo afectado pelas queimadas. O povo não entende e não quer ouvir. Hoje, principalmente os jovens já não obedecem aos sobas. O Estado não nos concede poderes para multar os que ateiam fogo à toa. O próprio Estado também não faz nada. Então, nós, os sobas, vamos fazer o quê?” “No tempo do colono, as queimadas só eram permitidas por ordem dos sobas. Actualmente, cada pessoa faz a sua queimada à toa”, acrescenta, resignado.
Por sua vez, o soba Lourenço Rufino, da aldeia de Porto Condo, no município do Mussende (Kwanza-Sul), explica como as queimadas são coordenadas por si, na sua área de jurisdição tradicional. “Aqui não há queimadas anárquicas. É o soba quem coordena as queimadas, em tempo próprio, de Agosto a Setembro, para a caça, limpeza das lavras e ao redor dos bairros. Antes das queimadas, comunicamos às comunidades vizinhas e às fazendas para evitarmos prejuízos colaterais”, esclarece.
Tantas são as queimadas por todo o país que o soba Rufino reconhece a escassez de caça grossa. “Aqui só aparecem pacas, lebres e, de vez em quando, um ou outro veado. De resto, até os javalis desapareceram”, afirma. Acrescenta que a limpeza das lavras por via das queimadas “é mais para os preguiçosos”.
Na província do Kuando-Kubango, o director da ONG Mbakita, Pascoal Baptistiny, dá conta de um cenário dantesco: “As queimadas pioraram, por causa da seca, as populações estão a queimar com a intenção de caçar. São quilómetros e quilómetros. Está tudo a queimar.” Na tentativa de reduzir os incêndios florestais e o desmatamento causado pela exploração desenfreada da madeira no Kuando-Kubango, a Mbakita, a Acadir e a The Nature Conservancy têm realizado programas de educação ambiental em várias comunidades.
O agrónomo Fernando Pacheco (um decano em questões agrónomas, económicas e governativas, com participação regular na imprensa) com explica que, apesar de serem práticas ancestrais, os incêndios florestais continuam a ser relevantes na actualidade, “dada a disfuncionalidade das instituições do Estado, incluindo as tradicionais”. E aponta três razões principais para a sua execução em Angola.
Em primeiro lugar, “as queimadas, quando bem executadas e em círculo incompleto, permitem a caça de animais diversos, proporcionando assim uma dieta alimentar mais rica em proteínas, o que ainda é mais importante por acontecerem em tempo seco”.
Em segundo lugar, o especialista aponta a necessidade de derrubar as matas dentro dos sistemas de produção tradicionais. Na agricultura familiar tradicional, “os camponeses não usam fertilizantes, seja por falta de dinheiro, seja por falta de conhecimentos.Fazem rotação das lavras para que os terrenos possam recuperar a sua fertilidade natural (cultivando partes e deixando outras de repouso até que a vegetação original seja reconstituída, variando a duração do repouso entre cinco e dez a 15 ou mais anos, de região para região). Quando chega a altura de usar o terreno em repouso, por falta de meios mecânicos, os camponeses realizam queimadas para fazer a desmatação”.
A queimada para “forçar” a rebentação de capins que servem de pasto, particularmente para a alimentação de cabritos, ou mesmo bovinos, em tempo seco, é apontada como a terceira razão, pois as altas temperaturas aceleram a germinação de sementes.
Finalmente, Fernando Pacheco acrescenta um último factor às três principais razões das queimadas. Estas práticas tradicionais – que no passado eram feitas com mestria, confirmando as palavras do soba Lourenço Rufino, do Mussende – estão hoje associadas a uma espécie de “retaliação ou represália”. As populações vivem em condições deficitárias e sem perspectivas de qualquer espécie de prosperidade, por isso “entendem que têm o direito de causar prejuízos a quem possui bens fundiários e equipamentos”, explica. “Deitam fogo a terrenos de fazendas, cultivados ou não, o que provoca elevados prejuízos aos respectivos empresários, sem que as autoridades locais tenham capacidade de evitar ou punir os supostos infractores. Do ponto de vista ambiental, a situação das queimadas em Angola é grave e das piores em África.”
Com o país literalmente em chamas, pergunta-se: Por onde anda o Governo do presidente João Lourenço? O que faz o Governo, enquanto deixa, indiferente e sereno, o país a arder? Vai continuar a ignorar as situações de penúria e exclusão em que vivem os camponeses? Para que serve o Ministério do Ambiente?
Há dois anos, na sua tomada de posse, a ministra do Ambiente, Ana Paula de Carvalho Pereira, elencou cinco prioridades para o seu consulado. Destacamos as três primeiras: a gestão sustentável das florestas, para se combater a desertificação; o reforço da fiscalização no combate à exploração ilegal da madeira; e a caça furtiva.
Temos calcorreado o país de lés a lés. No terreno, não encontramos nenhum sinal de acção governativa quanto a estas prioridades elencadas pela ministra. De facto, na vida real dos angolanos o Ministério do Ambiente apenas parece existir nos discursos televisivos, com total inutilidade prática.
É neste contexto de incúria para com a realidade do país que o presidente João Lourenço cria mais três províncias e centenas de municípios – uma “reforma” que não augura nenhuma vantagem, mas promete aumentar o despesismo, a disfuncionalidade do Estado e a inaptidão da sua acção governativa para servir o povo e o país.
Estaremos perante uma situação em que, enquanto os governantes saqueiam o país, o povo queima o país, todos contribuindo para a sua destruição? Mas que raio de país é este, que parece não ser amado por ninguém?
A irresponsabilidade política é manifesta. Em tom enfático e, sobretudo, absurdo, os dirigentes políticos afirmam que haverá orçamento para mais três governadores provinciais e centenas de administradores municipais. Ao mesmo tempo, porém, não há e continuará a não haver o mesmo orçamento para financiar directamente as escolas primárias, que são o alicerce primeiro para a construção de um futuro diferente e melhor para Angola.
Face a estas prioridades, somos obrigados a concluir que o Governo aposta em gerar confusão política e não encara com seriedade a transformação de Angola num país condigno para os seus cidadãos. Passámos décadas a destruir o país e a vida de milhões de angolanos com armas de fogo e corrupção. Agora, queimamos o país e o futuro dos angolanos com a corrupção, o desgoverno e caixas de fósforos.
Maka Angola
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