Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Ilustração: Otávio Nogueira/cc
04 de Abril de 2016
Por: Guilherme C. Delgado
O movimento do mercado de terras
Prevalece nesse processo de negação do direito público o estranho conceito de “terra mercadoria” como outra qualquer em pleno século XXI, à revelia não apenas das populações camponesas, como também do espaço público geral do território da natureza, sacrificado pela voracidade imediatista do business agrário e financeir
Tratar de temas conjunturais em momentos de crise cíclica requer especial atenção à perspectiva do analista, sob o risco de pulverizar a observação para a multidão de fenômenos, dispostos aparentemente de maneira caótica em situações críticas. O raciocínio se aplica com muita propriedade à conjuntura agrária brasileira, em momento de crise cíclica, cujo fator externo mais visível, a partir de 2013, é a queda do preço dascommodities agrícolas e minerais, representativo, mas não exclusivo do ocorrido nos mercados de soja, petróleo bruto e minério de ferro.
Esse declínio de preços numa economia que vem especializando seu comércio externo na provisão de meia dúzia de “mercadorias mundiais”, em condições normais, se refletiria sobre os preços das terras e arrendamentos rurais, também em sentido declinante. Mas ainda não há evidência factual desse fenômeno, não obstante a exacerbada valorização do preço da terra no Brasil nos anos 20001 até 2013, em geral acima dos ativos financeiros mais valorizados.
Aparentemente, na crise das commodities o mercado de terras do Brasil defende-se da desvalorização e caminha para um tríplice movimento, que lhe é endógeno, mas que na conjuntura adquire maior profundidade: 1) completa mercadorização da terra; 2) forte concentração fundiária em estrutura agrária altamente desigual; 3) tendência à internacionalização, principalmente nos ramos com nexos interindustriais mais diretos.
A primeira tendência, conquanto não sancionada pelos princípios jurídicos do direito de propriedade fundiária, funciona de fato como critério de norma real – terra como bem mercantil estrito, independente dos limites de direito público (função social e ambiental). E é favorecida pelo tratamento privilegiado concedido à dívida hipotecária rural, que continua a merecer tratamento privilegiado no regime de concessão de crédito rural a juros subvencionados, bancados pelo Tesouro.
Tenho a hipótese de que a não desvalorização das terras se sustenta pela peculiar operação dos Planos Anuais de Safra. No período 2000-2015, e mesmo no subperíodo crítico de 2013-2015, a irrigação do crédito rural subvencionado cresceu em termos reais na faixa dos 10% em termos anuais médios.
O segundo movimento, de forte concentração em estrutura fundiária altamente desigual (o índice de Gini da concentração fundiária nos Censos agropecuários de 1996 e 2006 situa-se no nível inalterado de 0,85), pode ser captado pela abrupta autoinscrição de imóveis rurais no Cadastro do Incra, entre 2003 e 2014. No período, a área total cadastrada de imóveis pulou de 418,5 milhões de hectares para 740,4 milhões de hectares, dado muito suspeito por representar 87% do território nacional. Diga-se de passagem, esse movimento está fortemente concentrado nos estratos de imóveis acima de 10 mil até 100 mil hectares e acima de 100 mil hectares, abrangendo cerca de 3 mil imóveis em todo o Brasil detentores de 202,5 milhões de hectares (27% do total).
O leitor precisa ser informado de que imóvel rural é um conceito administrativo, autodeclaratório, correspondente às áreas contínuas ou contíguas supostamente subordinadas à posse ou propriedade de determinada pessoa (física ou jurídica). Sua inscrição em cadastro serve de referência para a cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR), mas não guarda correspondência com registros cartoriais, tampouco comprova direito de propriedade. Mas essa inscrição e o pagamento do ITR bastam ao sistema bancário para conceder crédito rural subsidiado ao suposto proprietário. Esse exacerbado aumento da concentração fundiária nos imóveis rurais, contudo, denota forte suspeição de fraude e grilagem de terras públicas – terras indígenas e terras de parques e reservas naturais, que o IBGE nos informa em 2006 abrangerem em conjunto 23,2% do território nacional (198,2 milhões de hectares), enquanto as terras aparentemente devolutas públicas (designadas como “outras ocupações”) correspondiam a 36,2% (308,5 milhões de hectares). Obviamente, a soma da terra pública e dos imóveis rurais não pode ultrapassar o tamanho total do território nacional, de 850,4 milhões de hectares. O movimento de ultraconcentração é provavelmente o mais claro indício da verdadeira indústria da grilagem de terras rurais no Brasil, sob o olhar complacente dos poderes de Estado.
O terceiro movimento seria de certa forma dedutível dos dois anteriores, haja vista a forte conexão da demanda por terras e sua ligação com o comércio exterior das commodities.
A aquisição e o registro de terras rurais, sob titularidade declarada de pessoa física ou jurídica estrangeira, também são apurados pelo Cadastro de Imóveis Rurais do Incra. Mas este não capta o principal fluxo de internacionalização ora operante – a fusão de capitais no setor financeiro de empresas SA ou LTDA, detentoras de patrimônios fundiários em conjunto com plantas industriais, a exemplo dos setores sucroalcooleiro e de papel e celulose. Não se pode abstrair também do registro em nome de terceiros, ainda mais num cadastro autodeclaratório, aparentemente sem maior controle da titularidade real. O único controle legal para registro desses imóveis é um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) de 2010, que estabelece limites para esse registro, mas de que não temos notícia de sua eficaz aplicação. Por último, a Lei n. 13.178/2015, que virtualmente concede uma ampla legalização às muitas práticas de concessão aos particulares de terras públicas em zona de fronteira internacional, sanciona ilegalidades antigas ou novas concessões às pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, introduzindo uma entre muitas inconstitucionalidades.
Finalmente, até para atender aos limites deste texto, os movimentos apontados de mercadorização irrestrita, ultraconcentração fundiária e internacionalização do mercado de terras, coetâneos à valorização dos preços das terras e arrendamentos rurais, são expressões acadêmicas. Na verdade, exprimem, de um lado, a violência da grilagem de terras, com anuência implícita ou explícita do Estado (política agrária); e, de outro lado, a arbitrária privatização das terras étnicas – indígenas e quilombolas (artigos 231 e 232 e 68 do ADCT) –, das áreas de preservação ambiental contínuas em parques e reservas naturais (artigo 225) e das terras devolutas públicas.
Prevalece nesse processo de negação do direito público o estranho conceito de “terra mercadoria” como outra qualquer em pleno século XXI, à revelia não apenas das populações camponesas, como também do espaço público geral do território da natureza, sacrificado pela voracidade imediatista do business agrário e financeiro. Aqui reside, a meu ver, o cerne da questão agrária brasileira no século XXI, que os ideólogos da economia do agronegócio enxergam de maneira completamente oposta – como arranjo de “salvação da pátria”.
O movimento tríplice de mercadorização, ultraconcentração e internacionalização, que se observa no momento de crise cíclica das commodities, depende fundamentalmente de uma completa desregulação do mercado de terra relativamente aos regimes fundiários constitucionalizados, por um lado; e, por outro, de uma subvenção à valorização do preço das terras, mesmo na crise das commodities. E isso requer a captura do Estado a um dado pacto de poder – o do sistema do agronegócio, marcado com o selo da ilegitimidade. Daí que tal pacto de poder não se sustentaria a médio prazo, nos marcos do estado de direito da Constituição de 1988. Como agravante estrutural, temos o fato de que “terra mercadoria” e títulos da dívida pública constituem, na crise econômica, os ativos (títulos patrimoniais) mais valorizados em um sistema político em que ambos escapam de controles constitucionais, sob o olhar complacente dos monopólios de comunicação de massa, terceiro “setor” autoimune aos limites do controle constitucional (artigos 220 a 224). O leitor atento saberá extrair conclusões. Perceberá uma questão agrária muito além dos problemas típicos do mundo rural, semeada por ovos de serpente, com diretos e indiretos desafios à ordem democrática.
Guilherme C. Delgado é doutor em economia pela Unicamp, economista aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Ilustração: Otávio Nogueira/cc
04 de Abril de 2016
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