Segurança Alimentar I Hortas urbanas, uma moda necessária (Cabo Verde)
Com o advento das redes sociais, cada vez mais circulam na Internet notícias – algumas falsas e alarmistas, outras verdadeiras - sobre os perigos dos alimentos processados ou industrializados e, por outro lado, a insegurança quanto aos produtos hortícolas, por causa do eventual uso de fertilizantes químicos e pesticidas agro-tóxicos. Quer seja por estas ou por outras razões, em anos recentes, grandes metrópoles mundiais como São Paulo, São Francisco e Lisboa viram nascer o fenómeno das hortas urbanas e domésticas. Em Cabo Verde ainda não chegou a “febre” das hortas urbanas. Mas vem crescendo o número interessados. A FAO e o Ministério da Agricultura e Ambiente querem ver as cidades do país a investir na agricultura urbana e periurbana e para isso levaram a cabo um projecto que, para já, fez nascer 17 hortas na Cidade da Praia.
Numa tarde solarenga de um sábado de final de Maio, apanhamos boleia com o grupo Negra Plus Size (um projecto de empoderamento feminino) e fomos participar numa formação sobre hortas urbanas. O local escolhido foi uma agradável quinta num vale dos arredores da cidade, apropriadamente baptizado de Fundo Baxu, não fosse o seu proprietário um dos vocalistas do agrupamento musical Ferro Gaita.
O grupo é afinal heterogéneo, incluindo também homens de diferentes idades e até uma criança que, como todos, esteve bem atenta a tudo o que ali via e ouvia.
O interesse por hortas urbanas – do tipo de se ter na varanda ou no telhado da casa em plena cidade - é sim recente em Cabo Verde. Mas, numa vertente menos terapêutica ocupacional e mais consequente, ela pode ter impacto na vida de algumas famílias. Basta lembrar que Praia é o concelho onde vive a maioria das pessoas pobres de Cabo Verde (INE, Inquérito às Despesas e Receitas das Famílias 2016).
Segundo informações da FAO, as famílias urbanas pobres gastam até 80% da sua renda em alimentos, o que as torna muito vulneráveis quando os preços dos alimentos sobem ou o seu rendimento diminui. A FAO estima que, após a inflação mundial dos preços dos alimentos de 2007-2008 e a recessão económica que se seguiu, o número de pessoas que sofrem de fome crónica no mundo aumentou pelo menos 100 milhões, para mais de 1 bilhão de pessoas. O maior aumento ocorreu entre a população urbana pobre, as mulheres e as crianças.
A segurança alimentar nunca esteve mais na ordem do dia. Uma componente importante desta é o acesso a alimentos nutritivos. Em África e na Ásia, as famílias urbanas gastam até 50% do seu orçamento alimentar em produtos preparados baratos, muitas vezes carentes das vitaminas e minerais essenciais para a saúde.
Comer o que plantou
Cândida Cardoso, engenheira agrónoma e funcionária do Ministério da Agricultura há 29 anos, a formadora que nos orientou nas recomendações práticas para criação de pequenas hortas caseiras, é uma fervorosa advogada da alimentação à base de vegetais orgânicos e livres de pesticidas nocivos. Ela faz eco dos dados da FAO, que dizem que as frutas e hortaliças são as fontes naturais que têm maior abundância de micronutrientes, mas que “nos países em desenvolvimento o consumo diário de fruta e hortaliças é apenas de 20% a 50% do recomendado” pela FAO e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mais: as refeições urbanas baratas, ricas em gorduras e açúcares, também são responsáveis pelo aumento da obesidade e sobrepeso. Em Cabo Verde, como aconteceu em outros países em desenvolvimento, a diabetes e outras doenças crónicas relacionadas à alimentação são um problema de saúde crescente, sobretudo nas zonas urbanas.
Cândida Cardoso é nada mais do que a coordenadora técnica do projecto-piloto da FAO e do Ministério da Agricultura e Ambiente para implementação da Agricultura Urbana e Periurbana, do qual a Câmara Municipal da Praia é parceira.
Com início em Setembro de 2015, o projecto chegou ao fim da sua componente “prática” em Abril passado, estando agora na fase de elaboração de relatórios finais. O objectivo era, através da selecção de um pequeno grupo de indivíduos e instituições, estimular e incentivar à criação de hortas com o fim de proporcionar melhoria na dieta alimentar, garantir a segurança alimentar e também proporcionar a famílias de baixa renda uma oportunidade de reduzirem os seus gastos com a compra de alimentos e/ou obterem uma renda extra.
A horticultura urbana e periurbana tem ajudado cidades em desenvolvimento a enfrentar esses desafios. A prática contribui para o fornecimento de produtos frescos, nutritivos e disponíveis durante todo o ano e ainda melhora o acesso dos mais vulneráveis economicamente aos alimentos quando a produção familiar de frutas e hortaliças reduz os gastos com alimentos e quando os produtores obtêm renda com as vendas.
Os 17 beneficiários do projecto-piloto levado a cabo na Cidade da Praia – instituições de cariz social como a Associação Black Panthers, o Lar de Idosos de Pensamento, a Comunidade Terapêutica da Granja de São Filipe, entre outras; escolas como a Universidade de Cabo Verde e a Escola de Hotelaria e Turismo de Cabo Verde; e indivíduos particulares – receberam formação contínua e apoio na montagem das hortas: sementes, materiais para rega gota-a-gota, instruções para fabrico artesanal de adubos e pesticidas orgânicos. Foram ainda criadas duas estufas, uma na zona da ribeira de Fundo Baxu, que beneficia quatro famílias, e outra na ribeira de João Varela aproveitada por 10 famílias locais.
“O engajamento dos beneficiários do projecto foi positivo, até porque receberam todo o material necessário, estivemos sempre no terreno a acompanhá-los, a dar assistência, e a nossa expectativa é de que continuem. Daqui a um ano voltaremos para fazer o seguimento, e ver se as hortas continuam em funcionamento e qual o resultado para as famílias e instituições abrangidas”, conta-nos Cândida Cardoso em entrevista.
Uma das instituições contempladas pelo projecto, como já referido, é a Associação Black Panthers que tem, na comunidade em que se insere, um papel preeminente. Foi o local escolhido para a segunda parte da formação de curta duração a que assistimos.
No terraço do edifício sede da Associação, no bairro da Várzea, numa série de canteiros suspensos e em fila, fabricados a partir de paletes, crescem tomateiros, pés de beterraba, malagueta, pimentão, couves, salsa, etc. Há também mudas de alfaces e cebolas a germinar.
A horta, cuidada com zelo por dois elementos da associação que receberam formação para tal, existe há quase seis meses e está no seu segundo ciclo de produção. As hortaliças são usadas para alimentar as 62 crianças que diariamente frequentam o infantário e o pré-escolar da instituição e para refeições de 25 idosos carenciados, para além comporem a cesta básica fornecida semanalmente a 5 famílias vulneráveis da comunidade. Os excedentes - sim, há excedentes - têm sido usados para trocas de produtos com supermercados ou conservados através de congelação.
Entretanto, esta produção já algo volumosa, não implica um grande gasto de água uma vez que o sistema de rega é gota-a-gota e parte da água usada é reciclada através de um sistema de bombagem.
“Nós temos muito cuidado com a nossa horta, a começar pela terra. Usamos adubos naturais e reforçamos com cascas de ovo trituradas para fornecer cálcio e também cascas de bananas pelo potássio”, explica Maria, a funcionária da Associação que nos guia na visita e dá também a receita de biopesticida aprendida com a engenheira Cândida: “é só misturar cebola, alho e malagueta”.
Um tempero que, pelo aspecto viçoso das hortaliças, parece estar a resultar plenamente, com a vantagem de não constituir perigo para a saúde das pessoas.
A horta já é muito popular na comunidade. Os vizinhos mostram-se curiosos, perguntam pelos processos utilizados, pedem sementes e mudas para terem, se não uma horta, pelo menos alguns vasos em casa.
Cidades Verdes
Quem tem uma pequena horta na varanda de casa é a dona Rosário Fernandes. Ou antes, um jardim como prefere chamá-lo já que nele predominam as plantas decorativas e os chás. Contudo, fomos pessoalmente a Terra Branca conferir e lá vimos canteiros de malagueta, alface, beterraba, pimentão, tomate, cenoura, rúcula, couve, quiabo, salsa, coentro e outras ervas aromáticas, em fases diferentes de produção.
A pequena horta doméstica foi ideia do marido e nasceu há cerca de 3 anos quando o casal se reformou. O canteiro inicial deu lugar a vários outros e hoje a colheita já dá para garantir refeições.
Dona Rosário aponta, algo orgulhosa, “este ano as verduras do almoço de Páscoa vieram daqui”. A rir-se, conta-nos as “brigas” com o marido por causa da horta. São sobretudo devido à quantidade de água a usar na rega das plantas (não têm o sistema gota-a-gota).
“ É, mais do que tudo, um passatempo. Todos os dias, logo cedo, é a primeira coisa que faço: vir regar as plantas e a horta”. E parece ter passado o “bichinho” da horticultura às filhas, tendo ambas frequentado com grande interesse a formação ministrada pela engenheira Cândida Cardoso.
Algo essencial e que a técnica do Ministério da Agricultura e do Ambiente não se cansa de repetir é que não basta “ser verde” no prato, o pacote tem que ser completo. Isto é, nas formações que realiza quer enquadradas no projecto quer a título pessoal, sensibiliza os participantes para a necessidade de reciclar e reutilizar.
“ Eu digo sempre às pessoas que optam por criar uma horta para recorrerem a material reciclado. Aquilo a que chamamos tecnologias sociais, baratas e acessíveis, como paletes, pneus, caixas de fruta, etc”.
Praia foi o projecto-piloto. O plano passa por, nos próximos anos, replicar o processo em outras três cidades que foram abrangidas no estudo (financiado pela FAO) “Plano Director da Agricultura Urbana e Periurbana”: Espargos (Sal), Porto Novo (Santo Antão) e Mindelo (São Vicente).
Prestes a ser socializado, o estudo traz orientações para a prática da hortopecuária urbana, e conjuga com o Plano Director Municipal (que define as áreas verdes e as áreas para construção) e com o recém-publicado Código de Postura Municipal, já que até aqui não existe legislação específica a respeito das hortas urbanas e domésticas.
Numa cidade com características marcadamente rurais e que comporta duas grandes áreas verdes no centro (Taiti e Fonton) a questão é mais pacífica no que toca à criação de hortas. Já quanto a pecuária, a especialista é peremptória em desaconselhar a criação de animas de grande porte, quadrúpedes como vacas, cabras e sobretudo porcos, pelos inconvenientes e riscos sanitários que comporta. Coelhos, galinhas, patos ou pombas são o que recomenda e o que a vizinhança normalmente tolera.
Portanto, pequenos agronegócios podem existir dentro da cidade. Aliás é uma das áreas de empreendedorismo que mais cresceu nos últimos anos em todo o mundo e também em Cabo Verde. As oportunidades são várias: desde venda de hortícolas, com ou sem entrega ao domicílio (e aqui pode especializar-se em uma ou poucas espécies), venda de sementes, venda de mudas de várias espécies, de biopesticidas e adubos orgânicos, transformação alimentar ou mesmo…jardinagem. Sim, ser “agricultor ao domicílio”, cuidador/a de horta alheia.
Uma franja da população citadina que parece ser clientela certa são os vegetarianos e veganos, um grupo em crescimento e constituído sobretudo pela dita classe média. Existe inclusive um grupo na rede social Facebook onde se trocam receitas e recomendam-se fornecedores de hortícolas de confiança.
Produtos orgânicos, livres de agro-tóxicos e frescos são o que se quer. Se cultivados em quintal próprio ou no do vizinho, tanto melhor. O manuseio reduzido e o tempo de transporte menor garantem valor nutritivo superior ao alimento.
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