A edição da Medida Provisória 759/2016 e a perspectiva do desbloqueio das ações do Incra por parte do Tribunal de Contas da União (TCU) dão ao Incra a possibilidade de, após anos, implementar plenamente as políticas de reforma agrária. Esta é a avaliação do presidente da autarquia, Leonardo Góes. Ele acredita que o novo marco regulatório permitirá ao instituto adquirir terras a um custo menor, racionalizando investimentos na área de obtenção. Outro ponto destacado se refere à retomada do processo de cadastramento e seleção de famílias, além da regularização de lotes ocupados por quem tem perfil de beneficiário do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Nesta entrevista, Góes aborda ainda questões como titulação, valorização dos servidores, crédito e investimentos em infraestrutura nos assentamentos, traçando um quadro das diretrizes do Incra em 2017.
O Incra conseguiu recompor seu orçamento para 2017, o que representa ganho em um período de ajuste fiscal. Como isso influenciará a atuação da autarquia este ano?
Leonardo Góes – Depois de termos saneado ao longo de 2016 o passivo financeiro do Incra, teremos melhores condições de atender às demandas inerentes à execução do Plano Nacional de Reforma Agrária. O cenário de maior controle dos gastos públicos e rigidez fiscal poderia ter implicado em cortes no nosso orçamento. No entanto, o governo se mostrou sensível à questão da reforma agrária e preservou a autarquia. Também realizamos um trabalho de mobilização de deputados e senadores para a apresentação de emendas parlamentares para ações do Incra. Os desafios são grandes, mas acredito que o instituto dispõe de plena capacidade para enfrentá-los. Essas mudanças reforçam o papel do Incra.
Quais são os desafios?
LG – Posso enumerar vários, mas começo pela questão da aquisição de terras. A Medida Provisória 759/2016 cria os instrumentos necessários para que enfrentemos um problema que se arrasta há décadas: a judicialização das desapropriações por interesse social. O Incra tem recursos na ordem de R$ 1 bilhão depositados em juízo para pagamento de áreas desapropriadas e que foram alvo de contestação judicial. Isso significa que a autarquia investiu um montante elevado de recursos públicos e não conseguiu transformar essas áreas em novos projetos de assentamento.
Como superar o problema da judicialização?
LG – A aquisição de terras não pode ser um fardo para os cofres públicos. Precisamos buscar formas mais eficientes, rápidas e modernas de incorporar novas áreas à reforma agrária. Neste sentido, a MP cria as condições para a compra com pagamento à vista de propriedades rurais para novos projetos de assentamento. Em termos práticos, a autarquia ganha maior poder de negociação. Quem paga à vista adquire por menor preço. Esta é a lógica do mercado. A ideia é evitar a judicialização, algo comum nos processos de desapropriação.
Isso significa que o Incra vai deixar de fiscalizar o cumprimento da função social da terra?
LG – Claro que não. A função social da terra está garantida pela Constituição e continuará sendo fiscalizada pelo Incra. Mas a autarquia não pode recorrer apenas à desapropriação para a formação de seu estoque de áreas para a reforma agrária. O instituto tem a obrigação de dar uma resposta mais rápida aos milhares de acampados que aguardam o ingresso no PNRA. As famílias que vivem sob lonas não podem esperar oito ou dez anos até que uma disputa judicial se encerre.
A aquisição de terras com pagamento à vista é a solução?
LG – A aquisição de propriedades rurais com pagamento à vista é um caminho que vamos explorar. Porém ressalto que ela não é uma alternativa excludente; apenas se soma aos demais instrumentos de formação de estoque de terras. Além disso, há um aspecto importante que merece destaque. A evolução do agronegócio brasileiro tornou o setor extremamente competitivo. Hoje, é cada vez mais raro encontrar grandes extensões de terras improdutivas e passíveis de desapropriação. Os produtores rurais sabem que, para ter rentabilidade, a atividade econômica exige o máximo aproveitamento das propriedades. Isso também é um fator limitador que precisamos enfrentar.
Uma das principais diretrizes do Incra para 2017 se refere à titulação de lotes da reforma agrária. Como autarquia implementará esse processo?
LG – Em primeiro lugar, é importante frisar que nenhum assentado receberá título, antes de o governo cumprir com todas as obrigações que lhe cabem. Há um outro dado que sempre gosto de frisar: a titulação não é compulsória. O beneficiário precisa manifestar interesse em ter o documento. Também há dispositivos que impedem a reconcentração fundiária, já que o grande objetivo é valorizar o pequeno produtor da agricultura familiar. O governo federal busca dar maior segurança jurídica a quem trabalha na terra e fez por merecer a posse definitiva do lote. Com isso, amplia-se o acesso a linhas de créditos mais robustas, injetando recursos na economia de pequenos e médios municípios.
Mas o trabalho de emissão de títulos em larga escala exigirá do Incra um esforço elevado. A atual estrutura da autarquia será suficiente para dar conta de tamanho desafio?
LG – Quando se fala em estrutura, é evidente que há limitações. Sou servidor de carreira do Incra e conheço a fundo a realidade do instituto. Temos um quadro de servidores extremamente qualificados. No entanto, o corpo técnico enfrenta perdas salariais, desmotivação e a saída acelerada de mão de obra por conta das aposentadorias. Apesar da necessidade crescente, nos últimos anos não conseguimos realizar concursos públicos para recomposição do quadro funcional. Diante desse disso, a direção da autarquia tem que buscar saídas.
Quais são elas?
LG – A primeira diz respeito ao pleito que encaminharemos ao Ministério do Planejamento, no sentido de realizarmos concursos públicos para contratação temporária de técnicos que trabalharão diretamente nas ações que envolvem o processo de titulação. Esta é uma forma de contornar a falta de servidores e garantir a execução dos trabalhos. Uma outra frente importante se refere à nova estrutura da autarquia. As mudanças efetuadas priorizam o provimento de cargos por servidores. Isto tem efeitos de médio e longo prazo na valorização dos quadros técnicos do Incra. Além disso, manteremos o diálogo com o Ministério do Planejamento para que possamos ter no Incra carreiras bem remuneradas e qualificadas, a exemplo de outras áreas do governo federal.
O bloqueio determinado pelo Acórdão 775 do Tribunal de Contas da União (TCU), que impactou diretamente as ações do Incra, está prestes a completar um ano. O que se fez para solucionar a questão?
LG – Desde que assumi a presidência da autarquia, busquei estabelecer diálogo com os órgãos de controle externo, em especial o TCU. O Incra apresentou ao tribunal o Plano de Providências, que foi aceito pela Corte e implicou no desbloqueio imediato de boa parte das famílias atingidas pelo acórdão. Em seguida, desenvolvemos um trabalho de análise das questões apontadas pelo TCU e de avaliação caso a caso, buscando checar as informações e identificar as possíveis irregularidades. Acreditamos que, em breve, o tribunal julgará o caso e promoverá o desbloqueio de todas as ações do Incra.
Logo após o desbloqueio do TCU, o Incra poderá voltar a cadastrar e selecionar novos beneficiários do PNRA?
LG – Esta é a nossa expectativa. Hoje, o Incra tem 12 mil lotes prontos para receber famílias. Este estoque de terras é composto por áreas já pagas, aquelas disponibilizadas a partir da supervisão ocupacional e propriedades nas quais a autarquia recebeu a imissão na posse. Mas a ampliação do público da reforma agrária pode ser bem maior.
De que forma pode ocorrer o aumento?
LG – Prevista na MP, a regularização de lotes ocupados por quem tem perfil de beneficiário da reforma agrária pode incorporar 20 mil novas famílias ao PNRA ainda este ano. Com isso, o Incra retomará a média histórica de novos assentados – algo que não acontece desde 2013.
Além da previsão de retomada da criação de novos assentamentos e o desbloqueio de beneficiários pelo TCU, quais áreas merecerão destaque este ano?
LG – Um dos nossos maiores problemas na área de infraestrutura se refere à questão da habitação. Já estão garantidos pela área econômica do governo recursos para a construção de 25 mil unidades habitacionais rurais. As superintendências regionais atualmente se dedicam à qualificação dos projetos e à definição de prioridades. Também já está em curso a discussão com os agentes financeiros para que seja traçado o cronograma de recebimento das propostas das entidades organizadoras.
Há alguma novidade em termos de crédito?
LG – A agricultura familiar tem o Pronaf como principal linha de crédito. No entanto, o Incra disponibiliza outras modalidades. Por exemplo, o Fomento Mulher e o Crédito Instalação colocam à disposição de assentadas e assentados um volume de recursos que soma R$ 600 milhões em 2017. A política de reforma agrária vai muito além da entrega de lotes. Sabemos da importância do crédito para que os objetivos do programa sejam plenamente atingidos.
Depois de um período de recessão, o cenário econômico dá os primeiros sinais de recuperação. Em que medida o Incra pode se beneficiar da melhoria na economia?
LG – Todo o esforço feito pelo governo visa a colocar a economia nos trilhos. Medidas como a PEC dos Gastos e o ajuste fiscal buscam conferir solidez aos fundamentos econômicos do país. Só assim teremos as condições necessárias para que ocorra o aumento de recursos públicos destinados às políticas sociais estabelecidas no PNRA.
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