Foto: Elton Harding/Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)
“É como se de repente nossos relógios ficassem malucos”. Novo livro do Iepé revela como as transformações ambientais impactam diretamente a realidade dos indígenas
Os sinais da natureza, sempre cíclicos e previsíveis, agora são instáveis. Como isso impacta o modo de viver dos indígenas do Oiapoque? É esse o tema do novo livro do Iepé – clique aqui para ler a publicação. O livro é repleto de ilustrações, todas feitas pelos próprios indígenas do Oiapoque.
O Livro dos Marcadores do Tempo é resultado da Formação em Transformações Ambientais e Mudanças Climáticas, organizada pelo Iepé entre 2019 e 2022. As lideranças dos povos indígenas do Oiapoque-AP sentiam necessidade de entender e monitorar uma série de mudanças ambientais que vinham impactando seus modos de vida.
A formação foi composta por por 40 pesquisadores e pesquisadoras pertencentes aos quatro povos que vivem na região: Karipuna, Galibi Marworno, Galibi Kali’nã e Palikur.
Primeiramente, os pesquisadores fizeram diários de campo para anotar informações qualitativas sobre as transformações ambientais. Além dos diários, foram iniciados registros quantitativos das chuvas e das flutuações no nível dos rios. A terceira forma de registro foram entrevistas com conhecedores e conhecedoras das aldeias, para entender como sempre foi e como está agora.
A principal alteração talvez seja na dinâmica das chuvas e na passagem das estações do ano: as chuvas vêm ocorrendo em intervalos inconstantes e com uma intensidade inesperada. O sol está mais quente durante o ano todo. Mas essas macro-alterações escondem outras alterações mais sutis, quase poéticas, como o caso do caracol koklix. A altura do tronco em que suas ovas são depositadas indica o limite máximo que o igarapé vai atingir, pois ele sabe que a água mataria seus filhotes. Observar as ovas era uma forma de prever o futuro – ou pelo menos parte dele. Sempre foi assim. Não é mais.
O que são marcadores do tempo?
Os marcadores do tempo abrangem vários domínios e categorias de seres não humanos, inanimados e entes que compõem a cosmovisão dos povos indígenas do Oiapoque. Eles englobam o movimento das constelações; o ciclo lunar e das marés; a quantidade e intensidade de chuvas; a cheia ou vazão de lagos, igarapés e dos campos alagados; a direção e intensidade dos ventos e as variações de temperatura. Os marcadores relacionados aos seres não humanos abarcam comportamentos de diversos animais (mamíferos, aves, peixes, anfíbios, répteis e insetos) relacionados à reprodução, alimentação, ocorrência associada a certos habitats em períodos específicos do ano, além de certos tipos de cantos e sons emitidos em determinadas épocas do calendário sazonal.
Desse modo, quando se referem a seres não humanos, montanhas, rios, igarapés e florestas, em alguns casos usando o termo ou categoria “natureza”, os pesquisadores não estão se referindo a um domínio separado da humanidade, composto por formas de vida que possuem uma existência menos privilegiada que os seres humanos.
Até o fechamento do livro, foram registrados quase 100 marcadores ambientais que sinalizam tanto efeitos temporais curtos (transformações que podem acontecer
no intervalo de horas, no decorrer de dias ou semanas), quanto às mudanças sazonais que possuem uma temporalidade mais sazonal longa.
Confira agora as transformações relatadas em três importantes marcadores do tempo dos indígenas do Oiapoque:
Formigas taoca e o verão
“Quando a formiga taoca vermelha aparece em grande quantidade é sinal de verão. Se as taocas vermelhas parecerem muito amontoadas, isso é sinal que o verão vai ser longo. Se elas aparecem em pouca quantidade, atravessando o caminho em fila, uma longe da outra, é sinal de que haverá poucos dias de sol e que o verão será curto. Quando a chuva cai muito forte, a taoca vermelha aparece em fila para avisar que o outro dia vai ser ensolarado.
No passado, esse sinal funcionava como um tipo de calendário, ele marcava uma época certa do ano. Quando as taocas vermelhas apareciam, os antepassados ficavam alegres, pois eles sabiam que no dia seguinte eles poderiam ir para as suas roças ou roçar os matos, sair para caçar e pescar. Era muito raro chover fora da época e as pessoas faziam suas roças e sabiam que ia dar tempo de queimar.
Atualmente, nós percebemos as taocas indicando sem tanta precisão os dias de verão, muitas pessoas não conseguem queimar suas roças porque o verão está muito curto.”
A batalha musical entre a cigarra e o sapo
“No inverno a cigarra canta pouco – mas, quando canta, vai haver um dia ou dois de sol. No verão, ela canta o dia todo e só para ao meio-dia, pois ela descansa e depois torna a cantar de novo. Antigamente, a cigarra não cantava enquanto a chuva estava caindo e enquanto os sapos estavam gritando. Hoje, a gente percebe, escuta e analisa que as cigarras estão cantando enquanto a chuva está caindo e enquanto os sapos estão gritando. Por isso,
a gente fica em dúvida sobre o que está acontecendo. Está havendo uma disputa do tempo entre a cigarra e o sapo: aquele que estiver gritando ou cantando mais alto será o vencedor e definirá que tempo vai prevalecer.”
O calor enganou os tracajás
“Existe uma grande quantidade de tracajá que faz desova no rio Uaçá. Entre os meses de setembro e outubro, é a época que os tracajás começam a se reproduzir, ou seja, é a hora que eles vão colocar seus ovos nos campos de cerrado (savan-du), nas praias de areia, na beira do rio e nos barrancos perto dos troncos de buritizal. Existem locais próprios para eles fazerem suas covas para colocarem os ovos.
Os tracajás, geralmente, não colocam seus ovos no início de setembro, mas no final desse mês. Isso porque no início de setembro ainda tem um pouco de água nos lugares que eles desovam e a terra está úmida, falta secar um pouco. Então quer dizer que o tracajá também acompanha o tempo do verão e a previsão do tempo.
Segundo o cacique Adailson Narciso, quando o tracajá sobe para colocar os ovos, ele já tem uma técnica de mapear o local onde os filhotes vão nascer. A mãe tracajá vai esperar nesse lugar até os filhotes nascerem. Quando os filhotes nascem, a mãe tracajá faz uma comunicação com os filhotes, ela usa um sistema de chamada para avisar que está por perto deles. Ela faz esses sinais de comunicação com a mandíbula que produz um barulho para os filhotes ouvirem. Por isso, os filhotes ficam sempre por perto do local, até eles crescerem e depois quando ficam adultos voltam para desovar no mesmo local.
Existe uma regra de acordo com o regimento interno nas comunidades do povo Galibi Marwono. Nesses períodos, é proibido pegar tracajá para comer, pois é o período deles se reproduzirem. Segundo os mais velhos, antigamente, na desova de tracajás, as pessoas tiravam paneiros de ovos nesses lugares. Já há alguns anos, temos um projeto nas comunidades que desenvolve o manejo dos tracajás. No ano de 2020, a desova dos tracajás atrasou um pouco porque demorou para secar os campos onde eles desovam. Os campos ainda estavam úmidos no final de setembro, os tracajás se enganaram em relação ao tempo. Em 2020, a mortalidade foi muito grande e o cacique Adailson Narciso disse que foi também por causa da primeira chuva que parou o desenvolvimento dos ovos. A primeira chuva caiu antes do previsto, em outubro de 2020, e fez os ovos chocarem antes. Por isso, os filhotes nasceram bem pequenos e frágeis e quando eles foram colocados na bacia, muitos não sobreviveram. Muitos ovos também ficaram podres devido à temperatura.”
Fim do mundo em tempo real
O Livro dos Marcadores do Tempo é a fotografia de um planeta em colapso. O mundo como conhecemos está deixando de existir. Em seu lugar, surge um planeta mais quente e imprevisível. Se o não indígena ainda trata essa marcha para o precipício como um problema abstrato “para as futuras gerações”, para os indígenas trata-se de uma questão absolutamente concreta, um apocalipse em tempo real que acontece diante de seus olhos e embaixo de seus pés. Suas roças, caças e acesso à água vêm sendo prejudicados, mas o problema é ainda mais desesperador quando se vê que a própria realidade deles é que desaba. Os marcadores do tempo, sempre tão confiáveis, precisos e úteis quanto um relógio ou um calendário para um não indígena, agora são como um quebra-cabeças todo embaralhado.
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