Fonte: Diário Catarinense
Por: FERNANDO VOJNIAK
Foto: http://sertaosangrento.blogspot.pt/
18/12/2016
Há alguns anos, num dia 19 de abril, a reportagem da TV local, em razão da comemoração do Dia do Índio, entrevistava um cacique de uma das aldeias de Chapecó. A história dos indígenas fora evocada, e o repórter, sem pestanejar, disparou a pergunta: ¿Para você, o Índio Condá foi herói ou vilão?¿ O líder da reserva indígena respondeu que não o considerava um herói, mas um vilão, pois teria Condá ajudado as bandeiras paulistas e mineiras na expansão pastoril nos Campos de Guarapuava e de Palmas no século 19.
Vitorino Condá foi uma importante liderança Kaingang do século 19 e, em razão de muitos de seus feitos, teve o nome lembrado em diversos momentos da escrita da história oficial. Ele passou a ser homenageado no início do século 20 no contexto da colonização do Oeste de Santa Catarina. Sua liderança foi decisiva na penetração dos luso-brasileiros e dos bandeirantes paulistas na região, especialmente pela contribuição na abertura de um novo caminho de tropas que ligava os campos das regiões missioneiras do Rio Grande do Sul aos campos paulistas, passando então pelo atual Oeste de Santa Catarina. Desencadeou-se aí a história de perseguição e exploração dos índios do Brasil meridional.
Os estudos de História do Oeste de Santa Catarina foram sensivelmente ampliados e profundamente alterados depois que cursos superiores de licenciatura em História e centros de organização de arquivos e formação de acervos foram criados na região a partir dos anos 1980. Importantes pesquisadores da UFSC como o saudoso professor Sílvio Coelho dos Santos e o estimado professor Walter Piazza, recentemente falecido, foram pioneiros nos estudos arqueológicos e indígenas em Santa Catarina. Além disso, professores de novas instituições de ensino público e privado criadas na região ampliaram esses estudos historiográficos e antropológicos, constituindo uma nova escrita da história regional. A história oficial e a historiografia amadora, que sequer considerava os indígenas e mesmo a imensa população nativa cabocla, foram contrapostas por uma nova narrativa que não só incluía o indígena como sujeito histórico, mas também produzia pesquisa que fundamentava cientificamente os movimentos sociais na luta pela retomada de antigos territórios. E, sobretudo, revisava a história oficial laudatória que reservou aos indígenas alguns nomes de ruas e praças, negligenciando completamente as condições precárias da integração/inclusão das populações indígenas no passado e no presente.
Alguns aspectos dessa nova narrativa, como vimos, foram apropriados pelo líder Kaingang local. Para ele, Condá não era o herói dos índios, mas dos brancos, porque os ajudara e, inclusive, teve seu nome reconhecido quando se intensificara a colonização com resistência nativa quase nula e devidamente contida pela atuação corrupta de parte dos funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – depois Fundação Nacional do Índio (Funai) – registrando-se grilagens até, pelo menos mais intensamente, os anos 1970. A apropriação dessa nova narrativa que revisa o herói da história local não é nada estranha se considerarmos uma presença crescente de estudantes indígenas nas universidades da região nas últimas décadas e mesmo se observarmos o poder da disseminação do conhecimento científico no cotidiano. Não queremos com isso dizer que a universidade seja meramente reprodutivista, pois as formas de interpretação da história regional são ainda, felizmente, bastante diversificadas e, inclusive, as antigas narrativas excludentes, infelizmente, ainda vigoram.
Historicamente, os Kaingang ofereceram forte resistência à expropriação territorial e as pressões sobre seus modos de vida tradicionais e, mesmo com a interferência marcante das religiões cristãs e pentecostais, conseguem manter uma identidade cultural bastante forte, visível no uso de dialeto próprio. Mas também demonstram rara capacidade de sustentação de uma existência dinâmica ao falar português, ao organizar-se em movimento social com outras comunidades indígenas, ao praticar diversas religiões e promover diversas formas de sincretismo religioso, ao trabalhar nas empresas locais ou estudar e pesquisar, por exemplo. Neste mundo globalizado, em que a identidade étnica, restrita à comunidade, à aldeia, está cada vez mais dificil de ser sustentada, os Kaingang mantêm e ressignificam muitos traços da cultura tradicional, suas formas comunitárias, suas metades exogâmicas Kamé e Kairu e, ao mesmo tempo, revelam grande capacidade de adaptação, justamente no momento em que as fronteiras culturais estão mais fluidas e as referências identitárias mais amplas com a onipresença das novas tecnologias de comunicação, conhecimento e entretenimento na vida social.
Mas essa dicotomia herói X vilão, seria um caminho para problematizar a história de uma personagem como Condá ou mesmo qualquer personagem histórica? Para responder essa pergunta, é importante conhecer as novas narrativas sobre a história e a cultura indígena. Neste sentido, é muito bem-vinda a obra de Marco Aurélio Nedel intitulada Condá – O Imperador do Oeste (Ed. do Autor, 2015) que, no campo da literatura, se debruça sobre a figura de Condá, um nome certamente mais conhecido depois da memorável e emocionante narração de Deva Pascovicci, quando, para o narrador, "o espírito de Condá estava com o goleiro Danilo" na defesa incrível e fatídica que realizou no final do jogo contra o San Lorenzo, classificando a Chapecoense na decisão da Copa Sul-Americana contra o Nacional de Medellín, partida tragicamente abortada com o acidente do voo LaMia 2933.
Apesar de, na contracapa do livro, o autor da sinopse, o jornalista Juremir Machado da Silva, assinalar que ¿como toda boa história, [o livro] tem uma questão que não se cala: o índio Condá foi herói ou vilão?", Nedel não segue essa trilha e alerta que "poderá constatar o leitor que a narrativa é uma espécie de negação a essa pergunta¿. Em seguida, conclui que ¿nunca esteve o autor interessado em responder tal indagação.¿ Seja na história ou na literatura, uma narrativa que foge dos maniqueísmos é sempre mais justa com a complexidade do tempo e da humanidade.
Vitorino Condá é peça-chave não apenas para compreender a complexidade da história dos Kaingang, mas também para entender as mudanças mais recentes no modo como escrevemos nossa história. Na sua tese de doutorado em história defendida na UFSC em 2012, Almir Antônio de Souza apresenta novos documentos pesquisados no Arquivo Nacional sobre a penetração luso-brasileira nos Campos de Palmas e descobre um Condá mais complexo e menos heroico, porém menos vilão também. O autor apresenta um líder mais humano do que a imagem maniqueísta e acrescenta novidades aos importantes estudos anteriores sobre os kaingang, como, por exemplo, os de Lúcio Tadeu Mota sobre As guerras dos kaingang (EDUEM, 2009) e os de Wilmar da Rocha d¿Angelis quando atuou como técnico do Conselho Indigenista Missionário na defesa dos territórios indígenas do Toldo Ximbangue, no município de Chapecó. Assim como Souza, Nedel, no seu romance histórico, está atento a estas mudanças, inclusive; o autor faz referência a novos estudos históricos em meio a sua criação ficcional.
Em Condá – o Imperador do Oeste, temos um romance sensível a esse mundo complexo. O autor paga seu tributo à história ao mostrar que Condá praticamente nascera no Fortim do Atalaia, o posto mais avançado dos paulistas nos campos de Guarapuava no começo do século 19, convivendo, portanto, com a cultura de violência dos bandeirantes. Mas o autor permite-se também imaginar um romance de fundo entre Condá e uma índia chamada Cachenere, atendendo talvez a um apelo estético necessário a esse gênero de narrativa. Mas, com os novos estudos historiográficos como o de Souza, sabemos que Condá casou-se aos 14 anos com Rita de Oliveira Facxó e Pá, e depois de retirar-se do fortim para os matos e campos mais ao sul dos campos de Guarapuava, liderando uma centena de índios, reuniu-se a outras duas mulheres numa prática poligâmica bastante comum entre os índios daqueles tempos. Já na segunda metade do século 19, Condá lutou intensamente na defesa dos territórios kaingang chegando a empreender uma viagem à capital da Província do Paraná com uma comitiva de 30 índios no intuito de reclamar ao governador demarcações de terras, professores de primeiras letras e ferreiros.
Unindo então ficção e história, o texto de Nedel busca uma certa plausibilidade dos fatos que historiciza ou inventa, para criar aquilo que não está totalmente ao alcance do historiador, mas sim da literatura, do romance histórico e, assim como as novas narrativas historiográficas, não pretende representar Condá como herói, tampouco o coloca como pária. Uma característica cada vez mais marcante nesses novos estudos é a de evitar os maniqueísmos. Porém, os índios continuam sendo alvo de muito preconceito na região e com frequência são assediados por uma visão dualista de sua condição que exige, de um lado, que comporte-se conforme a visão salvacionista de um índio idealmente puro, integrado à natureza, que nunca muda seu modo de vida antigo, como se sua cultura também não mudasse, e, de outro, uma rendição total a uma nova cultura que destrói completamente seus hábitos tradicionais. Enquanto impera essa visão dicotômica, os índios passam por processos tácitos ou explícitos de invisibilização e desumanização ao longo da história. Quando não ofereciam perigo à expansão agrícola e pecuária e à grilagem de terras em nome da intensa exploração da madeira de araucária, espécie hoje praticamente extinta, não houve problema nenhum em eleger heróis indígenas ao modo idílico da literatura romântica do século 19 e nomear ruas e praças com suas alcunhas. Mas quando os índios tomam a palavra, organizam-se em movimento social e cobram do Estado a restituição de seus antigos territórios, essa aparente harmonia revela-se enganosa. A atuação de deputados da região Oeste contra as políticas de demarcação de terras indígenas, pública e notória, é prova disso.
Em Chapecó, parece estar também em curso um sutil apagamento da palavra índio dos corônimos e da toponímia local quando notamos que o Estádio Regional Índio Condá e a rua Índio Condá passaram a ser nomeados Arena Condá e simplesmente Rua Condá. Uma das mais importantes rádios de Chapecó, a Super Condá, já fora a Rádio Índio Condá.
Que notável força política tem a linguagem e o simbólico nessas coisas aparentemente tão simples. Mas o desaparecimento de uma palavra não é apolítico, é sintomático de forças de vanguarda ou conservadoras. Não temos dúvidas de que este apagamento seja produto de forças conservadoras e segregadoras. Contudo, "Condá", muito mais a palavra do que a personagem, permanece resistindo, mesmo que pouco saibamos de sua biografia.
Assim, é também importante reconhecer que Condá fora, antes de tudo, um índio da etnia Kaingang, figura bem real, bem humana que, como qualquer outra pessoa, como qualquer família Kaingang que luta pela sobrevivência, que vende artesanato na praça, acerta e erra, passa por momentos de força e de fraqueza e é suscetível também ao assédio do outro, sujeito à barbárie que nos assombra de tempos em tempos. De qualquer forma, é preciso combater a ignorância. Se a principal fonte do preconceito é a ignorância, pois que busquemos a luz do conhecimento na história, na antropologia, na literatura, na arte, mas também nas novas narrativas que os próprios índios constroem sobre si mesmos.
Depois do desastre da Chapecoense, profundamente sentido no Brasil e no mundo, sabemos que sonhos, famílias e vidas terão de ser reconstruídas. O futebol e a imprensa na cidade haverão de ser reconstruídos. O time que alimentava mitos e sonhos fora ceifado pela estupidez e pela negligência, mas a solidariedade colombiana e as homenagens mundo afora nos fazem acreditar na capacidade humana de solidarizar-se e na possibilidade de um futebol menos violento e com mais união. Infelizmente, foi uma tragédia que despertou maior consciência no mundo do futebol. É tempo de reflexão e reconstrução. Talvez seja também o momento de revisar nossos mitos, nossa história e nossa memória. #forçachape
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